
Helena OSORIO
16 de abr. de 2021
Béhen: influências místicas e mistas com origens (e não) portuguesas

Helena OSORIO
16 de abr. de 2021
A designer de moda Joana Duarte regressou à ModaLisboa (Lisboa Fashion Week), na noite de quinta-feira (15 de abril), para apresentar a nova coleção da sua marca Béhen que muito vai buscar às raízes portuguesas, mas não apenas, relevando as artes, a cultura, o folclore e um sentido estético único.

Segundo a designer, a Béhen "junta e apoia mulheres do mundo inteiro para tentar contrariar a filosofia colonialista, que infelizmente continua bem presente na cultura portuguesa. Considero que expansão portuguesa não tem nada de glorificante e nunca foi a minha inspiração, pelo contrário". Além do mais, Joana Duarte alerta para o facto de a sua marca se situar longe de qualquer apropriação cultural.
Mesmo assim descortinamos nesta coleção para o outono-inverno 2021/2022 da Béhen reminiscências das indumentárias de povos que povoaram o território nacional antes de Portugal se unificar no que é hoje e de outros que vieram depois com o império (no bom sentido) – o que prova que o mundo já comunicava há muitos séculos sem Internet e nomeadas vezes sem registo.

As influências mais fortes desta coleção parecem provir do norte de África, com os padrões semelhantes aos da azulejaria moçárabe tão presente na nossa tradição, mesclados de sopros de natureza em flor; joias filigranadas de tradição nortenha, afinal misto de mestrias muçulmanas e nórdicas; têxteis esvoaçantes cravejados de pedraria, evocando a rota da seda em caravanas pelo deserto e embarcações oceânicas que ligavam o Extremo Oriente e a Europa; as danças e cantares que levam ao fado que nasceu berbere, como também às narrações d' As Mil e uma Noites pela rainha persa Sherazade. Frutos de uma inspiração eterna: a riqueza islâmica num tempo de grande abertura e sabedoria. E este, sim (e não só), parece ser o mote de Joana Duarte.
Como a própria explica: "A coleção tem uma história por detrás, uma história de amor com princesas a viajarem em tapetes voadores por terras distantes. (Daí as carpetes de veludo transformadas em roupa.) A lenda da Lagoa das Sete Cidades foi uma das inspirações, bem como a caverna das maravilhas do Aladino".

Mas semelhantes franjas, borlas, longos brincos são igualmente visíveis na escultura ibera também de influência grega – como provam as vestes da Dama de Elche e da Grã Dama Oferente (Museu Arqueológico Nacional de Espanha); também as cores quentes e ornamentos aparentados se fazem representar no mosaico do rico romano, descoberto na villa romana do Rabaçal (Portugal).
O colorido de padrões, a diversidade de estampas e bordados, matérias e combinações, adereços da cabeça aos pés... influências que vieram talvez de mais longe, fazendo-se representar por tecidos indianos e panos africanos, até padrões orientais, entre outros, que nos chegaram de contactos estabelecidos "por mares nunca dantes navegados" como cantou Camões. E muito antes: dum mundo que era e não se sabia redondo e por todos se tornou navegável.

Estas são as tantas influências (eventualmente, fantasiosas e algo invisíveis) que encontramos no trabalho de Joana Duarte para a nova coleção da Béhen. Mesmo que não pareça, a Lagoa das Sete Cidades na ilha de São Miguel (Açores) e a caverna de Aladino reservavam, por um lado, todas essas maravilhas de uma Atlântida perdida a meio do oceano e, por outro, todos os tesouros exóticos de várias proveniências que se escondiam para não dispersarem. Uma união na diferença, na igualdade e na luta por um mundo que se desejaria melhor. E nem sempre é.
Não por acaso o vídeo da nova coleção abre com uma jovem loira poderosa a exibir os seios. Quase remetendo para a arte e cultura minoicas ligadas ao berço da Europa, pois assim se apresentavam as cretenses. Ostenta o que resta da cota de malha de uma suposta amazona guerreira que hoje só existe em África, mas que representa a força das mulheres de todo o mundo.
Outras manequins aparentemente de diferentes ascendências exibem também os seios ao longo do desfile, no claustro do Pátio da Galé, situado no Terreiro do Paço, local onde estavam instalados o Paço Real e a Casa da Índia até ao terramoto de 1755 em Lisboa.

O vídeo pode interpretar-se assim como uma representação do poder das mulheres nesta coleção e no mundo. Mulheres todas diferentes e belas na sua singularidade que a Béhen homenageia igualmente. Mulheres guerreiras que marcam o seu espaço e identidade. Sendo que alguns manequins masculinos também usam cota de malha, como adereços de aparato, mas quiçá também evocando os guerreiros medievais europeus, persas, turcos (entre outras proveniências) que a usavam também.
Disse um dia Júlio César, o conquistador do império romano, uma frase que se eternizou, caracterizando os lusitanos (lusos): "Há nos confins da Ibéria um povo que não se governa nem se deixa governar". (Até hoje.)
E é talvez essa irreverência ou mesmo rebeldia, como essa unicidade, que soam mais alto nesta coleção de Joana Duarte tão grande em referências, alianças e bom gosto.

O imenso claustro vazio serve de palco ao elenco inclusivo que desfila, como se fosse guiado por divindades. Alguns manequins até parecem encarná-las por vezes, ao ritmo da música, nos gestos. Fruto do misticismo absorvido em cada conto (e em cada canto) por onde passaram a princesa e o pastor do reino mítico das sete cidades que desapareceu algures no mar; o Aladino e o génio da lâmpada mágica, numa das mais famosas narrativas de Sherazade – a astuta filha do primeiro-ministro que se tornou monarca lendária de um dos maiores impérios da História; e por fim os povos do mundo inteiro que dignificam as mulheres.
Os looks parecem ser assim (e quase) o elogio à mistura de todas as preciosidades e encantos que se foram colhendo no correr do tempo. Os costumes, os motivos, os efeitos, as combinações, as cores que gritam dos livros, dos filmes e da memória de muitos povos. Unidos por caminhos terrestres e marítimos, percursos de montanha, rotas do deserto.

Enfim, depois de se estrear em outubro de 2020 no Lab da ModaLisboa, e após ser anunciada vencedora do concurso The International Sustainable Fashion Design (The Sustainables), Joana Duarte ressurge em força com o seu elenco inclusivo, belo e provocador, que enaltece a fusão de saberes ancestrais recolhidos pela própria (não importa de onde). Mas, em particular, sente-se um lado mais mourisco que é também de herança portuguesa.
Na mistura de cores alegres, padrões geométricos e fitomórficos, ricos tecidos como veludos, sedas e brocados adornados de franjas, plumas, missangas, lantejoulas, pedraria, filigranas, e todos como um só, harmonizando-se surpreendentemente.
Até onde nos leva a história das mulheres, a de todos povos e a da mais fértil imaginação.
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