Bettina Rheims fala sobre arte, fotografia e assédio sexual na moda no Festival de Hyères
“Não sou uma fotógrafa de moda", diz Bettina Rheims, numa master class comovente e evocativa durante o Festival de Hyères, uma das maiores celebrações anuais de jovens talentos da criação da moda e da fotografia.

Fundado como um festival de jovens talentos há 33 anos entre as paredes da famosa mansão Noailles, obra prima modernista com vista para o Mediterrâneo, o Festival de Hyères também se tornou um dos mais prestigiados prémios de fotografia da Europa. Este ano, foi Bettina Rheims quem presidiu ao júri.
Uma artista brilhante, que expôs a sua obra em inúmeras galerias e museus, Bettina Rheims também é famosa pelo seu trabalho no mundo da moda, particularmente no período que durou quatro anos, na década de 1990, quando produziu imagens punk e glamourosas, absolutamente icónicas, para a revista Details - que já não existe - em colaboração com o genial estilista Bill Mullen. Estas imagens são também objeto de uma exposição arrojada, instalada na antiga quadra de squash da mansão, onde é possível ver retratos ora ousados, ultra coloridos, de toda uma geração de estrelas que eram desconhecidas na época, como Angelina Jolie, Gwen Stefani, Salma Hayek e Mickey Rourke.
"Eu não queria uma exposição tradicional, como numa galeria ou museu, mas uma instalação viva que permitisse às pessoas interagir com a obra. Ver e tocar estes grandes cartazes, como páginas de uma revista", explica Bettina Rheims numa conversa com Bill Mullen, perante uma plateia de 300 pessoas, organizada pela Fédération de la Haute Couture et de la Mode. Numa das paredes do campo de squash, os visitantes podem folhear reproduções suspensas de um metro de altura.
"Eu ia a Los Angeles quase todos os meses. Estas fotos mostram como era a moda nos anos 90. Helmut Lang, Martine Sitbon e Jean Colonna. Capturam o período grunge, pós-punk, a era dos Nirvana. É por isso que Jean Colonna, que está aqui conosco, me disse que fui uma fotógrafa de verdade apenas durante estes quatro anos!", confessa Rheims com uma gargalhada.
Para Bill Mullen, estas imagens incorporam uma maneira diferente de celebrar uma nova geração. "Adotámos um ponto de vista diferente do da Vanity Fair. Gwen Stefani, Shirley Manson, da banda Garbage, Lil 'Kim: elas eram outro tipo de celebridade, um pouco como em 'Batman: O Regresso', quando o Pinguim diz ao Batman: "O que você coloca n na sua casa de banho, eu coloco no meu casaco!", brinca Mullen.
"Salma Hayek tinha acabado de chegar do México, e Angelina Jolie foi ao hotel onde estava o nosso casting, em Los Angeles, com uma pequena foto brilhante, pouco antes de uma atriz pornográfica e depois de uma empregada de mesa", lembra Bill Mullen, cuja emoção foi percetível ao longo da entrevista. A série tinha títulos como "Lost Angels” (Anjos Perdidos), "Do it right!” (Faça bem!) e "Violent Femmes” (Mulheres Violentas).
“A criatividade abandonou a maioria das revistas. Na nossa época, não havia retoques. Hoje, a Relações Públicas de uma atriz intervém para corrigir algumas coisas. As fotos são retocadas antes mesmo do início da sessão de fotos!”, diz Bettina Rheims.
Proveniente de uma notável família parisiense, semelhante aos Rothschilds, Bettina Rheims começou por fotografar strippers em Pigalle. O corpo feminino, seja nu ou vestido, é um tema central do seu trabalho, como em Close Chamber, onde revisitou os primórdios da pornografia, brincando com a confusão de papéis entre modelos amadores e aqueles que as assistem. Entre os seus trabalhos posteriores, a série Rose, c'est Paris, em colaboração com o marido, o escritor Serge Bramly, apresenta um conto fotográfico de uma jovem musa em busca da sua irmã. Bettina Rheims foi também uma das primeiras fotógrafas a capturar o surgimento de transgéneros, muito antes de o assunto vir à tona. De facto, toda a carreira de Rheims representa o empoderamento das mulheres.
"Nunca fotografei mulheres que não estavam cientes de que estavam a fazer. Mas, talvez eu seja a última fotógrafa, visto que todos os meus colegas estão a ser banidos". No entanto, apoia fortemente o movimento #MeToo.
"O que aconteceu este ano é fantástico. Como todos os movimentos sociais, vai ter muita importância. É importante que exista o #MeToo, pois ele vai mudar o mundo. Agora, as mulheres podem dizer não! Eu falei com um dos membros deste júri, uma artista, mas também uma modelo muito conhecida, Saskia de Brauw, que nunca enfrentou uma agressão, mas se lembra de todas as vezes em que pediam às modelos que tirassem as roupas, e elas nem sequer tinham o direito de se sentirem desconfortáveis, pois isso era exatamente o que deveriam fazer. São todas essas pequenas coisas que os homens podiam fazer diariamente, como dizer "você está sexy”, apesar de a pessoa não querer ouvir isso. Hoje, isso está a parar e é uma grande mudança", diz calmamente.
"Eu também fui modelo. Há um século. E aconteceram algumas coisas terríveis comigo. Quando entrávamos no estúdio de um fotógrafo, ele dizia: "tire a roupa”. Só para ver qual seria a nossa aparência num vestido de noite de alta costura, tinha que nos ver de cuecas e sem sutiã!”, relembra.
Será que apreciou ser a presidente do júri? "Antes mesmo de olhar para as fotos, quero conversar com os finalistas, saber de onde vêm, como chegaram às finais, o que farão com o prémio se vencerem”, explica Bettina Rheims, acrescentando que quer ajudá-los a entender como fazer um portfólio, encontrar a revista certa ou como editar o seu trabalho.
"Eu tive a sorte de me cruzar com Helmut Newton quando tinha 25 anos e ele tornou-se meu mentor e professor. Todas as quintas-feiras à noite ele olhava para o meu trabalho e criticava-o frequentemente, mas às vezes fazia um elogio. É o papel do artista transmitir o seu conhecimento. O nosso não é uma habilidade, como fazer uma peça de mobília, em que se treina alguém para reproduzir um certo estilo. O nosso papel é dar aos jovens talentos um pouco do nosso entusiasmo e experiência”, completa Bettina.
Mas, Bettina Rheims reconhece que a fotografia de moda provavelmente prejudicou a sua reputação como fotógrafa de arte. "Nunca dei prioridade a uma encomenda sobre os meus próprios projetos. As encomendas são úteis, pois são como um laboratório para desenvolver novas técnicas. A melhor maneira de aprender é fazer editoriais ou publicidade. O meu primeiro projeto foi fotografar strippers em Pigalle. Eu tinha apenas um projetor e uma câmara. Mas, na moda, trabalha-se com uma equipa, por isso quando tudo está perfeitamente bem instalado para a sessão de fotos, eu chego e faço o que eu gosto".
"Trabalhar na moda arruinou a minha carreira como artista. Alguns museus nunca expõem meu trabalho porque sou uma 'fotógrafa comercial'. Esquecem-se que Man Ray e Brassaï, Richard Avedon e Irving Penn trabalharam com encomendas. Não é importante saber em que condições a imagem foi tirada, importa apenas se é uma boa imagem. Estamos aqui para mostrar às pessoas coisas que elas não querem ver. Quando comecei a trabalhar com pessoas transexuais, ninguém queria publicar essas imagens. Então, se um dia pudermos persuadir alguém a abrir a sua mente, vamos estar a ajudar a construir um mundo melhor. Esse é o papel do artista!”.
Copyright © 2023 FashionNetwork.com. Todos os direitos reservados.