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30 de mar. de 2017
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Enquanto Brexit é desencadeado, moda britânica relativiza seu impacto

Publicado em
30 de mar. de 2017

Há um ano, os criadores de moda britânicos haviam se expressado publicamente contra o Brexit. Cerca de 90% dos criadores sediados em Londres eram assim fortemente contra à ideia de deixar a União Europeia e muitos dentre eles haviam então se expressado publicamente contra este divórcio. Hoje, eles assistem a este mesmo divórcio com uma certa inquietude.

Gareth Pugh - Outono-Inverno 2015 - feminino - Londres - © PixelFormula


A 23 de fevereiro de 2016, quer dizer, quatro meses antes do referendum de 23 de junho, a Burberry até mesmo publicou uma carta no Times a fim de apoiar o lado pró-europeu. Apenas algumas semanas antes da votação, Vivienne Westwood usava uma T-shirt agitprop lembrando as pessoas de se inscreverem para a votação e de votar para a manutenção da União. Ela era também um dos 282 grandes criadores a terem assinado uma carta aberta opondo-se ao Brexit. Pôsteres pró-europeus do fotógrafo alemão Wolfgang Tillmans foram até mesmo pendurados na entrada do British Fashion Council durante a Fashion Week masculina de Londres, durante este mesmo mês de junho.
 
Mas, hoje, quarta-feira de manhã, enquanto a Primeira-Ministra, Theresa May, desencadeava o artigo 50, o setor britânico da moda ficou realmente chocado com a rapidez desta saída da Europa. As conversações com os criadores e com os profissionais do setor revelam sua prudência no que diz respeito ao que poderia decorrer, tudo numa atmosfera geral de tristeza face ao que se assemelha a uma separação desordenada.

A carta de Theresa May – entregue em mãos ao próprio Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu – desencadeia um processo de negociações de dois anos que permitirá ver como o Reino Unido deixará a União Europeia, depois de 44 anos fazendo parte do seu seio.
 
Entre os fashionistas, restam poucas dúvidas de que o Brexit terá enormes consequências em todos os níveis para o setor, quer em se tratando da formação, quer em se tratando ainda das exportações. A Grã-Bretanha abriga a escola de moda mais famosa no mundo – a Central Saint Martin’s –, que fornece a cada ano dezenas de jovens talentos às grandes Maisons do continente. No entanto, enquanto os partidários conservadores do Brexit pediam a implantação de regras mais restritivas para os vistos, Theresa may rejeitou a ideia de excluir os estudantes dos números de migração líquidos.
 
Estatuto de cidadãos
Um dos problemas que será o objeto de negociações será o estatuto dos cidadãos europeus que moram no Reino Unido. Seu direito de permanecer residentes será respeitado? Os recém-chegados terão os mesmos direitos? É preciso destacar que, entre os 10 principais desfiles de criadores sediados em Londres, encontram-se Erdem Kurtoglu (Um Turco-Canadiano), Roksanda Ilincic (uma Sérvia de Belgrado), Marques'Almeida (dois Portugueses) e Mary Katrantzou (nascida na Grécia).
 
E como podem atestar os participantes na temporada londrina dos desfiles, quase todas as coleções apresentam vestuários e acessórios fabricados na Europa Continental.
 
"Fiquei surpreso, assim como todo mundo, com o resultado do referendum. Sem dúvida nenhuma, sou leal à Europa. Tenho lojas e showrooms no continente, apresento a minha coleção masculina na Fashion Week de Paris desde 1976 e nós compramos os nossos tecidos em Itália e no resto da Europa", assim declarou Paul Smith.
 
Segundo este criador, "é impossível antecipar o efeito que esta saída terá sobre a compra de bens ou de serviços, ou ainda sobre o sentimento dos consumidores, mas, enquanto empresa independente, somos bastante flexíveis para suportar a tempestade. Faz muito tempo que estamos em atividade e passamos por inúmeras crises".
 
Aí onde anteriormente um jovem criador londrino ou uma grande Casa de Moda, que vendem seus produtos a uma loja de departamentos ou a lojas da União Europeia, tinha de fazer apenas uma simples expedição, com o Brexit esses bens tornam-se exportações. E há também os artigos de moda. Qualquer estilista pode dizer: enquanto até agora bastava um simples envio pela DHL para fazer uma sessão de fotos em Paris, depois do Brexit, enviar vestuários de Londres necessitará de uma maior organização, custosa em tempo e em dinheiro.
 
Por outro lado, muitos criadores britânicos estão a organizar seus desfiles no continente. Unicamente em Paris, encontram-se Vivienne Westwood, Stella McCartney, Alexander McQueen e Paul Smith. E, a cada ano, o British Fashion Council patrocina os London Show Rooms no bairro parisiense do Marais.
 
Várias centenas de coleções londrinas vão literalmente, todos os anos, aos showrooms parisienses apresentar suas coleções e pré-coleções. O Brexit fará da organização desses eventos quebra-cabeças logísticos.
 
Segundo Alice Temperley, que organiza suas apresentações em Londres, mas que escolhe sempre um showroom em Paris durante a temporada do pronto-a-vestir: "A Europa desempenha um papel importante. Temperley London vende na Europa e trabalhamos com fábricas europeias, muitos são os nossos empregados e parceiros que veem da Europa".
 
Curso da libra
Desde o Brexit, o curso da libra caiu, o que aumentou os custos de produção de marcas britânicas como a Temperley, mesmo que isso tenha sido compensado por um forte crescimento dos gastos dos consumidores estrangeiros no Reino Unido.
 
"Sempre pensei que somos mais fortes juntos, no entanto, o Brexit vai brevemente tornar-se uma realidade e temos de agir rapidamente para proteger e reforçar a nossa atividade neste novo mundo. Sou uma criadora e uma mulher de negócios. Como diretora de criação de uma empresa dinâmica e em crescimento, não acredito nas barreiras", declarou, por outro lado, Alice Temperley ao FashionNetwork.
 
A fraqueza da libra também afetou grandes marcas como a Burberry. Segundo Andrew Roberts, encarregado das relações empresariais dentro da grife: "Mesmo que o Brexit não seja o resultado que esperávamos, também é verdade que uma libra mais fraca impactou positivamente os fluxos de turistas em direção ao Reino Unido e forneceu à Burberry um vento a favor em termos contábeis".

Instagram: Vivienne Westwood


A União Europeia é o principal mercado mundial. Segundo um recente relatório da Câmara dos Lordes, a União Europeia é o principal destino de desembarque do Reino Unido no setor têxtil e de vestuário, com 74% das suas exportações. Exportações que avançaram de 4.9 para 6.7 mil milhões de libras entre 2012 e 2016, ou seja, um crescimento de 36% em cinco anos.
 
"É muito cedo para poder fazer comentários, pois não conhecemos o resultado das negociações. Continuamos a concentrar-nos no que podemos controlar. Temos equipas que examinam como e onde poderíamos ser impactados, e confirmamos que íamos tentar compensar qualquer impacto negativo sobre o custo ligado ao Brexit. Vale dizer que, enquanto marca britânica e orgulhosa de sê-lo, estamos empenhados a continuar a produzir no Reino Unido", acrescentou Andrew Roberts.
 
Depois do referendum, houve uma ressurgência bastante lamentável do chauvinismo. Os juízes da mais alta corte de justiça foram assim qualificados "inimigos do povo" pelo Daily Mail depois da sua decisão que tornava obrigatório um voto do Parlamento sobre o Brexit. Uma atitude que contrasta fortemente com o hiper-cosmopolitismo das passerelles londrinas.
 
Vistos, direitos aduaneiros e propriedade intelectual
Ironicamente, Theresa May, que votou para a manutenção do país na União Europeia, se comprometeu como Primeira-Ministra com uma via de um Brexit "duro", com um controle estrito sobre a imigração e com a saída provável do Reino Unido do Mercado Único e da União Aduaneira.
 
Segundo Caroline Rush, CEO do British Fashion Council: "Ainda há tantas questões não resolvidas envolvendo a nossa saída da União Europeia que o desencadeamento do artigo 50 por Theresa May esta quarta-feira não trará respostas imediatas. O mundo britânico da moda mostrou muito bem sua oposição à saída da União Europeia antes do referendum, mas agora que a decisão foi tomada, temos de garantir que os interesses do nosso setor sejam levados em conta no acordo. Graças a uma série de mesas-redondas com os criadores e com o setor em sua totalidade, o BFC identificou os principais problemas, em especial envolvendo vistos, os recursos humanos, os direitos aduaneiros e a propriedade intelectual. O setor da criação em sua totalidade passa de maneira regular por um crescimento superior àquele da economia e o fato de trabalhar junto com outros setores criativos é a melhor maneira para que o setor da moda mantenha a sua posição de concorrente no mercado".
 
Em junho passado, quando o BFC publicou o seu estudo, pedindo a 500 criadores para dar sua opinião no que dizia respeito ao Brexit, apenas 4,3% declararam que votariam para a saída da União. Desde o referendum, o BFC organizou muitas reuniões com os ministros do governo e mesas-redondas com membros do Parlamento. Ele também revelou o slogan para a Fashion Week de setembro último: "London is open to business". A própria Theresa May organizou uma receção no número 10 da Downing Street para destacar "a inclusão e a educação" no setor da moda. Mesmo que o humor geral não tenha dado as caras na festa.
 
A vitória do Brexit, na realidade, foi por pouco, com 52% contra 48%. No entanto, enquanto as sondagens mostram um aumento do número de Britânicos em favor do Brexit, as Casas de Moda mais recentes e seus criadores tornaram-se mais discretos, no que diz respeito à sua opinião sobre o assunto.
 
Por fim, na véspera do desencadeamento do artigo 50, o Parlamento escocês votou em favor da organização de um segundo referendum sobre a independência. A Escócia e a Irlanda do Norte votaram contra o Brexit a 23 de junho passado. 56% dos votantes na Irlanda do Norte se pronunciaram contra o Brexit e uma das suas preocupações é o estabelecimento de uma fronteira estrita com a República da Irlanda a fim de poder coletar direitos aduaneiros e de prevenir a formação de um novo corredor que permita aos migrantes entrar no Reino Unido e na União Europeia. Uma decisão deste tipo poderia também ter consequências sobre os dividendos da paz em Ulster, estabelecida há apenas dez anos, depois de 25 anos de uma sangrenta guerra civil.
 
Para terminar, uma ilustração do fato por meio do qual os criadores se tornaram mais discretos no que diz respeito ao Brexit. A lista dos 10 melhores desfiles estabelecida pela Vogue Runway durante a última temporada londrina era dominada por J.W. Anderson (um Norte-Irlandês), Christopher Kane (um Escocês) e Simone Rocha (uma Sul-Irlandesa). Nenhum desses três criadores quis compartilhar conosco seus comentários sobre este assunto.

 

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